Lapa, 18 de outubro de 2014.

Sua benção, Dona Orosina.

Hoje, realizei a ação A Cidade Marca aí na Maré, junto com dois jovens artistas moradores, Anderson Alexandre e Matheus Frazão, por ocasião do Ato pela permanência de um Museu, ameaçado de remoção. Na ação, cada um de nós mergulhou um pano branco em um balde com tinta, vermelho goiaba, uma tinta que resiste um pouquinho mais ao tempo. Depois, arrastamos os panos pelas ruas, marcando o trajeto da nossa caminhada, principalmente pela Avenida Brasil. Em certos momentos, batíamos os panos no chão. Era como se cada batida gritasse ao mundo “daqui não saio, daqui ninguém me tira”.

Foto de Flávio Vidaurre

Tenho que ser sincera com a senhora: não imaginei essa ação para a Maré. A primeira vez que fiz A CIDADE MARCA, foi na Lapa, no final de agosto de 2014, apenas eu e Jamie Duncan registrando. Passamos pelas ruas Men de Sá, Gomes Freire, pelos Arcos da Lapa, pela Rua Joaquim Silva, depois voltamos pela Rua do Riachuelo. Na Lapa, pouca gente gostou, disseram que sujava a cidade. Passamos por cinco viaturas da polícia militar, mas nenhuma nos parou. Quem parou foi um coordenador do setor de turismo da prefeitura. Disse que eu poderia ser presa. Eu ainda argumentei que estudava artes, que aquilo era uma pesquisa, mas acho que ele só não chamou a polícia porque pensou que eu fosse louca. No entanto, fez a pergunta que eu temia: “Por que sair por aí marcando a cidade desse jeito?”. Naquele momento eu não sabia falar muito sobre isso. Sabia apenas que o meu corpo estava transbordando de raiva, precisando desaguar.

foto de Jamie Duncan

A segunda vez que realizei a ação foi na Lapa também, junto com Mariana Scarambone, uma amiga querida de longas datas, e Cíntia Faria, uma pessoa que eu tinha acabado de conhecer e que, depois vim saber, nunca tinha feito ação nenhuma na rua. Saímos da Casa Vinte e Quatro, uma casa útero, de gestar novos mundos. É lá que Filipe Espíndola, Sara Panambi, e Matheus Santos moram. Antes de sair, Sara me disse pra marcar a Praça da Cruz Vermelha, bem no meio. Marcamos, e os olhos da Sara me ajudaram a desconfiar de que algo nessa ação diz respeito à memória sobre a cidade. Estava lá, marcado, o chão de onde Sara, Filipe e outros amigos, um dia, foram expulsos.

foto da Brenda Cristina

Mas realizar a ação na Maré ganhou sentidos que eu nem imaginava, principalmente dentro de um ato pela permanência de um museu. No Museu da Maré o pessoal conseguiu botar vários tempos num espaço só. Tem uma casa de palafita, igualzinha as que a senhora e seus vizinhos construíam, com tábuas trazidas pela Baía de Guanabara. Imagino a senhora passeando por esses tempos: criança aqui, mãe acolá, avó benzendo a molecada… O que instaura esses tempos dentro daquele museu são os objetos doados por suas vizinhas e seus vizinhos. E pelas filhas e filhos das suas vizinhas e seus vizinhos. E pelas netas e netos das suas vizinhas e seus vizinhos.  Todo mundo lá, inscrito, pra quem souber ler.

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Nós ali, na Avenida Brasil, diante de uma multidão, também nos inscrevemos um pouco nessa história, nesse chão. E quando chegar o dia seguinte, e o outro dia, e mais outro, quem passar pela Avenida Brasil vai lembrar que algo aconteceu. Não é um canto qualquer. Teve gente desaguando ali. Assim como, quando ando pela Lapa, deixo as marcas vermelhas me lembrarem de um tempo de fúria, no qual eu quis acreditar que esse chão também é meu.

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Já em casa, num desses meus devaneios, imaginei a senhora lá comigo, arrastando o pano pela Avenida Brasil. E quando alguém viesse questionar, a senhora responderia de imediato:

“Vai pra casa do caralho com tua ordem e progresso! É sangue negro que corre aqui, é sangue meu. Você pergunta: Isso mancha? Mancha. Sai? Sai. Demora, mas sai. Tem mancha que num sai é nunca! Vira dor, dor, dor. Mas aqui não tem só dor não senhor. Aqui tem nossas casas, nossas famílias, nossa história. Não senhor, deixe tudo como está, deixe tudo aí. Foi assim que a gente fez, e se for pra fazer de outro jeito tem que ser junto com a gente. Não senhor, o Museu fica. A Maré marca!”

Mas parece que o museu vai ficar mesmo. Parece que o Estado quer que o museu fique.  O Governador entende que a história da senhora e de seus vizinhos é importante para os turistas, para as pousadas e para os hotéis da cidade. Por isso mandou o Secretário de Turismo cuidar do assunto. É a Secretaria de Turismo, não a Secretaria de Cultura, que está cuidando do assunto. No fundo, a briga é a de sempre, a mesma que a senhora enfrentou quando chegou aqui. A briga pelo direito à cidade.

É muita gente brigando por isso, há muito tempo. Vozes e vozes por trás da minha, me levando pra beira da minha própria história, marcada por cinco anos de trabalho como educadora de artes, em várias escolas públicas da Maré. Marcada também pela saída, há mais de vinte anos, de Salvador, minha terra natal. Essa ação passa algo de violência sim, nasceu da raiva. Mas é principalmente uma declaração de amor pela cidade e, sobretudo, por essa gente que, assim como à senhora, inventa o chão onde precisa pisar.

*Dona Orosina Vieira foi uma da moradoras mais antigas da Maré. Vivenciou e protagonizou diversos momentos históricos do bairro, como a ameaça de remoção ainda na década de 40. Morreu aos 109 anos, na comunidade do Timbau. Seu nome hoje batiza o Arquivo Orozina Vieira, um projeto de pesquisa, preservação, armazenamento e recuperação de fotos, documentos e objetos sobre a história do Complexo da Maré. Fonte: acervo.vivafavela.com.br

** O registro na Maré foi feito por Flávio Vidaurre. Os registros na Lapa foram feitos por Jamie Duncan e Brenda Cristina.

*** Essa carta foi lida pela primeira vez durante o 1° Colóquio: O Coletivo, o comunitário, o colaborativo – práticas estético-políticas e insubordinações artísticas, realizado no Campus Rio das Ostras / UFF, através da coordenação de Jorge Vasconcellos e Mariana Pimentel.

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No dia seguinte, começaram a aparecer nas redes sociais os registros do ato. Pensei então em prolongar a memória desse momento também nas redes, através de uma campanha que intitulei “A Maré marca. O Museu fica.”. São imagens construídas a partir do “roubo” das fotos do evento, postadas nas redes sociais da internet, e do tratamento no photoshop, realçando a cor da tinta usada na ação.

As fotos foram “roubadas” de Flávio Vidaurre, que convidei para registrar a ação, e dos perfis de Ratão Diniz, Marcelo Freixo, Valdirene Militão e Matheus Frazão.

Fotos Valdirene Militão e Marcelo Freixo

Foto de Flávio Vidaurre e Ratão Diniz

Foto de Valdirene Militão

Fotos do perfil de Matheus Frazão e de Ratão Diniz

A Maré Marca O Museu fica (5)

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